terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Não se trata de poesia

Em grande parte do mundo bloguístico nacional pude constatar (e sem surpresa) o destilar de ódio em relação a Soares ou a Sócrates. Ninguém quer ficar do lado dos derrotados, todos uns vencedores orgulhosos a transbordar de razão. Apesar da sua idade Soares fez a campanha mais empenhada e arriscada de sempre e pode dizer-se: não obstante terem sido cometidos erros de abordagem, fez a campanha mais activa e mais próxima do maior número de portugueses, de todos os candidatos. Mas Soares também perdeu por culpa própria, por má escolha do secretariado do partido socialista ( a única possível de conceber como monopolizadora ao inicio das previsões) e por uma campanha mal vinculada e gerida (ex: excesso de centralização no adversário). Isto eu aceito tranquilamente e sem rancor porque nunca foi o meu candidato ideal (este seria, sem sombra de dúvidas António Guterres ou Jaime Gama).

Mas não me lembro de umas eleições que me tenham deixado tão incomodado no desfecho. Basta dar um vista de olhos pelos comentários de cronistas jornalísticos ou pelo universo dos blogs mais politizados. Um odor a vingança, a desforra ressabiada, em jeito de aversão desrespeitosa pela figura. Muitos eleitores que votaram em Alegre (e quiçá uma significativa parte senão a maior) o que quis, foi humilhar Soares. Cavaco não os incomoda. Soares era o mal que era preciso extirpar. Acho que muita gente desejou por um desfecho indigno para Soares. Tal não aconteceu pois a personalidade mais enraizada na nossa cultura democrática não se apaga com uma simples derrota eleitoral. O seu passado áureo já ninguém lho tira e é em função deste que tem rolado a nossa juvenil experiência democrática.

Detesto onanimismos ou consensos circunstanciais. Por isso não consigo adaptar-me facilmente ao sucesso da ideia-chavão do "anti-sistema" e "supra-partidarismo" de Alegre que tão bem vendeu nestas eleições. Deputado por Coimbra em todas as eleições desde 1975 até 2002 e sempre um engano. Sempre uma amostra de potencial retórico sem actos e consistência para o apoiar. Um dos responsáveis pela perda de peso político de Coimbra e da região centro que foi gradualmente e sorrateiramente sendo esquecida nas gavetas da assembleia. Mas quem tem memória não esquece facilmente a carambola que foi sendo sempre aprontada e sempre em nome da região. O slogan mais recente da campanha presidencial é mais astucioso e romantizado mas o conteúdo vago e abstracto foi o mesmo de sempre.

Portanto não houve “Trova do Vento Que Passa” ou tributo aos defuntos gloriosos e à pátria que me desviasse das minhas convicções. Para mim existiu apenas um acto egoísta de oportunismo político matematica e cinicamente calculado. Na sua mais pura base religiosa inconsciente, o povo sempre idolatrou mártires e rebeldes com mensagens convenientes e fáceis de decorar ( o caricatural fenómeno “D.Quixote” como alguém teve a originalidade de o descrever). Alegre e seus pares bem souberam como gerir e vender essa alegoria de vitimização de ocasião a muitos ingénuos que não se quiseram informar mais. Quem ouvisse Helena Roseta (aquela que disse que ele é maior que o partido socialista) advogar sobre «o milhão (ou mais) de votos» de Alegre, julgaria que foi hoje a primeira vez que alguém concorreu contra o sistema. Como se nunca tivesse havido Otelo, em 1976 (obtendo 26% contra os 58% de Eanes) e 1980; Pintasilgo em 1986; vários outsiders da Direita, como os generais Veloso e Galvão de Melo, etc (wikipedia).

Quem saberá realmente o que se passou nos bastidores do casting socialista? Como se pode patrocinar a ideia de apunhalamento político quando não existe qualquer facto que o corrobore? Alegre nunca foi o candidato oficial do partido socialista, apenas lhe foi questionado sobre a disponibilidade para o tal. O mesmo foi feito a António Guterres, Jaime Gama e António Vitorino. Infelizmente nenhum destes aceitou. Mas não existiram lugares reservados, houve discussão e debate dentro do partido e o estabelecimento de um estudo de sondagens. As sondagens não lhe eram favoráveis ao inicio ( basta ver a imprensa da altura) e o PS decidiu que seria necessário um candidato de maior relevo e peso político para derrubar Cavaco. Alegre tinha "anti-corpos" dentro do partido, como o prova a corrida à liderança (16% dos votos contra a larga maioria de 80% de Sócrates), e nunca seria apoiado internamente. A escolha obvia e única na altura de evitar uma crise interna só podia ser mesmo a candidatura conglomeradora de Mário Soares. O resto foi o que se viu...

Ser parte integrante de um partido implica, e voluntariamente, assentir os princípios e regras constituintes. Ninguém está ali obrigado. Quando não se concorda com a estrutura elementar de um partido, a medida mais coerente e nobre só pode ser a deposição de funções. Tal não aconteceu e se acontecer já não será no momento certo de honestidade, no momento de confrontação com o povo eleitor. A abstenção seria até aceitável mas nunca, nunca a criação de uma nova candidatura no recinto do partido que sempre o acolheu e do qual sempre sorveu. Não seria então já para mim a questão primitiva de decidir se queria um candidato da minha área ideológica ou não, seria uma questão de dignidade política. A mesma repulsa teria sentido se porventura Santana Lopes tivesse de facto concebido uma nova candidatura dentro do seio da esfera política social-
democrata.

Ninguém questionaria os “malefícios” da "diabólica e mafiosa" máquina partidária se esta o tivesse escolhido a ele. E teria ele algo a dizer ao país se não tivesse a vitimização do seu lado? Manuel Alegre foi o "candidato da cidadania" apenas porque não foi escolhido pelo partido. Presume-se que vá continuar no partido. Com mais ou menos “sarilhos inconstitucionais”. Com mais ou menos "cidadania". Resta agora saber o que acharam verdadeiramente os militantes socialistas deste acto de traição política pois o seu discurso idealista de pátria e cidadania poética aqui já não serve.

Led

Sem comentários: