Discorriam Francisco José Viegas e João Pereira Coutinho, no último “A Torto e a Direito”, a propósito da indústria contemporânea do trágico e calamitoso, protagonizada desta vez pelo surto de gripe suína. Decerto os símbolos apocalípticos são um símbolo incontestável do nosso tempo cultural. Encontramo-los facilmente em filmes e em livros - o homem permanentemente ameaçado por forças colossais e incontroláveis, quer sejam sob a forma de meteoritos, mudanças climáticas abruptas, atentados nucleares ou pandemias letais. Deverá haver alguma explicação metafísica e psicanalítica para a nossa atracção pelo fúnebre calamitoso. Segundo FJV, a explicação filosófica acerca-se do equívoco trazido pela glorificação do corpo pelo Homem moderno. É bem verdade que, da ruína dos mitos divinos e terrenos (alguns do século passado), o Homem regressou ao fundamento deles todos, precisamente ele próprio e àquilo que o delimita de palpável, o seu corpo. Dizendo “não” à fábula bíblica que se instalara durante séculos para tranquilizar o mistério da natureza e do Homem, a Ciência remeteu os limites do Universo ao próprio Homem. A Ciência tranquilizou sobretudo enquanto durava o brio do desmentido divino. Mas, uma vez transposta a euforia do desdito divino secular, galgada a incontestabilidade da ilusão comunista como sistema humano derradeiro e omnisciente, de novo o estremecimento do mesmo problema se colocou ao Homem. De facto, paradoxalmente às expectativas iniciais (depositadas por muito realistas do séc. XIX), à medida que a ciência ia decifrando um mistério, outro mais denso se defrontava. Por isso a Ciência nunca servirá para tranquilizar o absoluto do mistério do Homem, sendo que a tranquilidade só existe de uma consciência firmada em limites. A Ciência engendrou mesmo novos limites, impossibilitou a pacificidade que deriva de um enigma estancado. E essa é mesmo a característica mais admirável e igualmente assombrosa da evolução da ciência. A sua natureza indómita, volúvel e imparável. Mas de modo nenhum se lhe pode imputar a responsabilidade de não responder à questão essencial pois esta não é de facto uma questão, mas antes uma interrogação que deriva da nossa existência gratuita de seres humanos pensantes num universo sem sentido. Assim, o mistério do Homem acentuou-se, e com isso uma nova opressão de demanda. O Homem ficou assim limitado à palpabilidade do seu corpo. O Homem estremou o seu questionamento a uma só dimensão e medida de grandeza, a do imediatamente palpável e mensurável. Sendo que os mitos projectam em valor aquilo que valorizamos, a degradação deles (do corpo) é a nossa degradação (do espírito), ou seja do próprio Homem. O corpo sofre hoje portanto a mais obsessiva demanda de projecção do espírito. E o drama joga-se na incorruptibilidade do último. Dentro de mim o corpo é intemporal como eu. Como resolver o paradoxo? O Homem criou novas necessidades, esconjurou os novos traidores da sua fé moderna (a "saúde"), responsabilizou os delitos pecaminosos, desta vez pela sua falta de exercício físico, pela dieta desequilibrada ou pela falta desta ou daquela prática "saudável". Assim o mesmo sistema religioso culpabilizante se manteve, ainda que sob novas formas mais actuais, mas apenas os autos/instrumentos de criminalização da consciência se alteraram. O Homem continuará a acreditar que deverá controlar tudo o que o rodeia iludido que oferece uma significação ao mistério. Dentro deste dogma, o imparável relógio biológico que acarreta consigo a natural velhice e corrupção física, é por isso objecto de um desassossego angustioso para o Homem moderno da ciência e da técnica. O corpo é hoje e em boa verdade, a derradeira tentativa aproximação/transposição a um espírito eterno revoltoso. Determinámos no corpo a nossa sustentabilidade espiritual. E, esvaindo-se esse apoio pelas leis da natureza, o Homem atemoriza-se pelo confronto com o vazio que sempre o acompanhou. Mortas as ideologias, o Homem sublimou, divinizou, endeusou, glorificou o corpo até à exaustão que se avizinha. O último reduto de suporte no vazio insuportável do universo. Daí que qualquer ameaça à autoridade desta entidade corpórea mas espiritualizada, provoque o alvoroço global que observamos quando algo foge do nosso controle. “O mito/valor do nosso tempo”, dizia FJV. Mas todos os mitos têm a sua fragilidade e todos os dogmas transitórios. E o final deste já se pressente por todo o lado, pela simples apreciação que se lhe faz (sendo que os mitos duram enquanto não temos consciência que são mitos, duvidar deles é já o prenúncio da sua morte). Repetindo-me, que vamos re-inventar agora?
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