sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

O Marcelo não confia nas mulheres


Decidi publicar na íntegra uma resposta interessante ao Prof. Marcelo da conhecida jornalista Fernanda Câncio (Glória Fácil), desmontando todo o malabarismo intelectual mais desonesto e cínico vindo de certos sectores dos defensores do não que usam e abusam com uma esperteza perversa da lógica dual do referendo. É esperto porque acicata a desconfiança inerente dos portugueses nas instituições, no Estado, nos governantes, nos políticos... e todos sabemos como o português gosta de esquemas, de manhas , de enredos obscuros e de agendas escondidas de partidos, abraçando rapidamente a desfaçatez e a renúncia do que à partida parecia uma escolha natural. Sendo que o principal intuito dessa lógica inversa é claramente a confusão do eleitorado flutuante e desmobilização do eleitorado do sim . Mas quanto à posição em si, que tenta falsamente demarcar-se da beatice bafienta dos movimentos religiosos por ser dirigida a uma camada mais sensata e informada da sociedade...Não vejo como se pode defender que as mulheres que abortam prematuramente não devam ser presas e, ao mesmo tempo, anunciar que se votará contra a descriminalização proposta. Alguém o tinha escrito e é verdade, é certo que, e como em tudo, poderá haver sempre casos de desmazelo e irresponsabilidade de mulheres que fazem aborto, ou ainda prematuramente que engravidam devido a negligência, mas a irresponsabilidade moral não pode ser legislada, é para ser lidada pela consciência ética de cada um, ou não estivéssemos a falar de mulheres emancipadas. Até porque certamente essa não será experiência mais preponderante. Poucas mulheres farão aborto levianamente. O normal é o aborto levar a sofrimento, angústia e uma humilhação profunda. E é exactamente e não mais sobre esse drama que vamos votar, impedindo que permaneça criminalizado.
Mas vejam o que escreveu a Fernanda, é que vale mesmo a pena ler tudo:

O professou Marcelo tem, diz ele (acabou de dizer na RTP), uma posição heterodoxa. Um NÃO heterodoxo, muito especial, verdadeiramente extraordinário. E porquê, explica ele? Porque ele é ‘contra a penalização da mulher. Às dez semanas, aos cinco meses, aos oito meses.’Se a pergunta fosse, portanto, ‘está de acordo que a mulher que aborta – no limite, até aos 9 meses – deixe de ser criminalizada?’, o professor Marcelo responderia SIM, concordo. Mas, explica o professor, o que a pergunta do referendo pergunta é ‘muito mais que isso’. Porque ‘a mulher pode abortar sem causa nenhuma –- não há período reflexão nenhum nem aconselhamento nenhum --, para uma lei de liberalização nestes termos sou NÃO’.

E portanto, diz o professor Marcelo, que ninguém sabe onde foi buscar esta ideia de ‘não haver período de reflexão nenhum nem aconselhamento nenhum’ – vai-se a ver o professor Marcelo queria um boletim de voto com umas cinco páginas e uns trinta artigos a especificar as exactas condições em que se poderia interromper a gravidez, o número de dias de reflexão, a composição dos gabinetes de aconselhamento, etc -- ‘é muito claro: eu até sou SIM à despenalização mas sou contra uma lei que vai mais longe que a despenalização, que é permitir uma livre escolha sem justificação nenhuma. Um estado de alma permite à mulher abortar. Porque lhe apeteceu, põe em causa uma vida humana’.E acrescenta que ‘os progressistas espanhóis, que legalizaram o casamento dos homossexuais, não fizeram isto, têm uma lei como a nossa actual e não quiseram mudá-la’.

Ainda bem que o professor Marcelo é tão claro. Eu, por exemplo, que nem sou professora nem formada em leis e tenho as minhas muitas e muito óbvias limitações, fiquei a perceber que o professor Marcelo acha que interromper uma gravidez até às 10 semanas deve continuar a ser crime porque a pergunta permite que a mulher escolha. Já interromper uma gravidez até aos 8 meses, desde que não fosse a mulher a escolher, não seria crime.

Ou seja: interromper até às 10 semanas por decisão (‘estado de alma, apetecimento’, como diz o professor) da mulher não pode ser porque põe em causa uma vida humana. Perseguição penal e pena de prisão com ela (e não venham com a conversa de que elas não vão presas. Não vão presas porque a pena foi nos últimos anos suspensa, mas a sentença ninguém lhes tira). Já aos 8 meses de gravidez, desde que interromper seja por decisão de outrem (o professor Marcelo não explicou de quem, mas isso agora não interessa nada), não põe em causa uma vida humana. Ou melhor, põe, mas não faz mal. Deve ter sido por uma boa causa, sem estados de alma, porque não foi uma mulher a escolher.

Claro que o professor Marcelo não se deu ao trabalho de explicar o que é que ele acha que são razões e motivos atendíveis, que não estejam já na lei em vigor, para se interromper uma gravidez, como ele diz, aos 8 meses (altura em que, como toda ou quase toda a gente sabe e presume-se que o professor Marcelo também deve saber, já se fala de bebé e não de feto e há quase generalizada viabilidade). E claro que também não interessa nada em que condições se faz uma interrupção de gravidez: nunca houve mulheres a morrer disso, como se sabe (invenções da malta fracturante) nem a ficar estéreis ou a passar uma temporada nos hospitais por complicações abortivas. Nada disso. Além de que, se morreram ou ficaram com problemas de saúde, é bem feita, não fossem abortar por ‘estados de alma’ ou porque, de repente, lhes ‘apeteceu’ dar cabo de uma vida humana.

O professor Marcelo tem de facto um NÃO extremamente (como diria o maradona) especial. Extremamente. Um NÃO em que a vida humana – a tal vida humana às 10 semanas -- só é um valor a preservar se estiver em causa a decisão da pessoa que é suposta tê-la dentro de si durante nove meses, amá-la e cuidá-la. É de facto um NÃO extremamente claro, e estou muito agradecida ao professor Marcelo por esta clarificação, que é tão tão claramente clara naquilo que recusa.

Simplificando, o professor Marcelo criou um slogan que é o inverso, o espelho do tão odiado ‘na minha barriga mando eu’: ‘na barriga da mulher só não pode mandar ela’.

O professor Marcelo não confia nas mulheres portuguesas. Vidas humanas nas mãos -- nas decisões -- delas, nem pensar. É por isso que o professor Marcelo vota NÃO. É um 'NÃO, não confio nas mulheres'.

Ainda bem que o professor Marcelo explica as coisas tão bem explicadas. É que há gente que vota NÃO que se calhar ainda não tinha percebido porquê -- agora ficou a saber.

Ah, é verdade -- mas isso agora também não interessa nada -- os tais ‘progressistas espanhóis’ querem mesmo mudar a lei e propuseram-no no programa eleitoral. Mudar a lei para algo parecido com o que o referendo propõe, e precisamente porque consideram que a decisão deve pertencer à mulher. Mas para quê informar-se alguém antes de perorar na TV perante uns milhões de portugueses quando pode inventar o que lhe vier à cabeça enquanto fala?

Fernanda Câncio - Glória Fácil

Led

4 comentários:

Anónimo disse...

Concordo com o que escreves, e como sempre, muito bem. De facto, a lei actual é de uma hipocrisia atroz, sendo de uma enorme urgência a sua alteração. E esse é o cerne da questão que agora se debate. Por tudo isso não podia deixar de votar Sim.
Certo... a questão de referendo centraliza-se acima de tudo na mulher, o que compreendo, visto ser ela o alvo da injustiça da actual legislação... mas quando leio "...poderá haver sempre casos de desmazelo e irresponsabilidade de mulheres que fazem aborto, ou ainda antecipadamente que engravidam devido a negligência...", não posso deixar de perguntar se será mesmo verdade aquelas histórias de abelhinhas e flores que me andaram a contar...
Sei que nestas questões é extremamente difícil particularizar, mas pergunto-me em quantos dos casos de gravidez não desejada e aborto a negligência será exclusivamente da mulher. Não se questiona sequer a emancipação, não se questiona sequer a liberdade, mas quando se fala nestes valores, quando se fala de Vida, deve falar-se não em um, mas em dois seres humanos responsáveis. E não só em direitos, mas também em deveres.
O Sim neste referendo é a única escolha lógica porque dando o devido valor ao equilíbrio e sentido de justiça do ser humano, lança uma oportunidade de mudança que me parece essencial para educar e discutir com verdadeiro discernimento. Mas neste aspecto recuso a centralização na figura da mulher. E o caso não deve ser só pensado quando se corre o risco real de ter um filho indesejado nos braços. A questão agora não é bem esta, eu sei, mas se calhar já devia ser...

Ledbetter disse...

Claro que sim! Por essa mesma razão iremos todos votar! A irresponsabilidade no planeamento familiar ou na interrupção da gravidez (que repito aqui acreditar constituir larga minoria dos casos) tocará obviamente , salvo raras excepções (desconhecimento da gravidez do outro parceiro), os dois elementos do casal e muitas vezes da própria família. No meu comentário sobre a responsabilidade a mulher é usada como símbolo lato da paternidade e detenção absoluta do embrião, apesar de que, e como é natural, as consequências negativas do aborto recaírem muito mais profundamente sobre a mulher.
Como nunca existirá maneira de definirmos o que é vida humana (e não apenas vida vegetativa, como querem fazer passar certos grupos descontentes mesmo com a lei actual), e sendo que essa própria lei corrente já “resolve” em parte este debate, a sua interpretação terá sempre que ser feita de acordo com os códigos éticos de cada um de nós. Nesse sentido, um Estado não pode impor pela via da constituição uma visão moral amplamente discutível que considera crime um acto que, segundo os princípios actuais, é apenas e só da responsabilidade consciente do indivíduo. É só isso que está em questão, a despenalização de um acto (que sempre existirá) que advém da consciência individual. È então assim para mim exclusivamente uma questão de cidadania, de liberdade individual.

Obrigado pelo comentário!**

Anónimo disse...

O Prof. Marcelo é homem e conservador e por isso diz estas barbaridades! Mas o preocupante é ele ser tido como bastante racional e culto e por isso deve ter levado muita gente atrás desta ideia absurda. A culpa não é dele, mas sim do poder que lhe deram ao consagrarem-no como o maior e melhor "opinion-maker" de Portugal, quando o que ele faz ao domingo à noite é tão só explicar os assuntos da semana parcialmente, como se todos nós fossemos "mesmo muito burros". O preocupante são as enormes audiências do programazeco, em que ele através da sua grande eloquência ganha em anos e anos de ensino, convence facilmente a maioria da opinião pública.

Deveria haver um estudo sobre a vitória do Sócrates e do Cavaco, que relacionasse as vitórias com aquilo que os comentadores, e não só o Marcelo, disseram nas rádios e televisões e escreveram nos jornais. Não tenho dúvidas quanto aos resultados, mas isso já é outra história.

Relativamente a este caso, a Fernanda Câncio (não é esta a namorada do nosso primeiro-ministro?)respondeu-lhe como merecia e como mulher até foi muito educada, na minha opinião. Só poderia ter falado (sabemos lá se o Marcelo não lhe vai responder... porque gostaria imenso que ele me explicasse isto), tal como muitos defensores do Sim se andam a esquecer,dos "cerca": "há cerca de X clínicas em Portugal que fazem abortos cladestinamente" (e já agora podiam falar também do nome dos seus donos), "há cerca de X mulheres que morrem todos os anos vítimas de abortos mal feitos"... e estranhamente não são as pessoas mais favorecidas economicamente, e "ha cerca de X mulheres que ficam estéries por um aborto mal feito", e também "fazer um aborto em X condições custa X". Mas disto ninguém fala, e por isso a pré-campanha do Sim está a perder pontos a passos largos a favor do Não. Já para não falar das "figurinhas tristes" de alguns sectores da Igreja.

É preocupante ver que ainda há pessoas, sobretudo homens (e já agora aproveito para congratular os homens que não são "marcelos", felizmente!, e conseguem entender isto como um problema de saúde pública e de hipocrisia), que pensam que uma mulher aborta sem pensar e reflectir.. há quem não saiba que é necessária a autorização de uma comissão, composta por psicólogos, para se fazer um aborto (isto num futuro desejado por mim, mas dificil de acontecer segundo o meu humilde prognóstico)..há quem pense que NÃO é preciso uma razão para fazer um aborto, como se se tratasse de uma simples ida ao cabeleireiro. Bah

Continuarão a aparecer bebes em caixotes do lixo, clinicas e pessoas sem escrupulos a ganhar balúrdios com este negócio da China e uma sociedade hipocrita e cínica que diz automaticamente não mas pensa sim. E a Igreja fica feliz com este cenário...
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Ledbetter disse...

Olá Moon! Concordo em absoluto com o que escreveste e só queria rectificar o que escrevi no comentário acima de “...as consequências negativas do aborto recaírem muito mais profundamente sobre a mulher.” para as “ consequências do aborto recaírem muito mais profundamente sobre a mulher”. A diferença é pequena mas essencial !
Obrigado pela participação que bem merece a nossa preocupação e indignação!
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