quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Manual de sobrevivência

Trabalhar em Agosto pode ser de uma crueldade bruta para quem foi embebido desde cachopo do inviolável relógio anímico nacional. Tempo de esvaziamento, tempo de liquidação do autómato que nos vai oprimindo durante todo o ano. Compasso de espera, de evocação , de renascimento. Por isso desafiar este mês com obrigações pode ser de um sofrimento atroz digno de uma epopeia, sobretudo quando se tem metas a cumprir com celeridade. Pior ainda quando se vive numa cidade que tem a sua programação sintonizada com a debandada geral da vida académica. E o homem é um ser gregário por natureza, dizem os psicólogos. E a preguiça é a mãe de todos os vícios, diz o povo. Contagiante e perversora. E este é ainda o sagrado mês da “silly season” nacional, dizem os jornalistas. Como é que em face destes factos inverosímeis se arranja ainda um espaço mental harmonioso para trabalhar como no resto do ano? Mas nem tudo é um calvário. Por contraposição cria-se uma sensação de apaziguamento geral. As estradas e as ruas estão desimpedidas do rebuliço de carros e pessoas que durante o ano nos deixa por vezes à porta da insânia. O tempo até vai ajudando um pouco com os seus extemporâneos achaques de frescura que nos fazem esquecer a indolência generalizada . E depois é apreciar os doces momentos que por vezes a solidão nos traz. A calmaria em certas alturas. Não apenas a que se define por ausência de movimento mas a outra, a que sobe além dessa e chega até a beatitude. Porque só aí se nos abrem os olhos para a beleza melancólica e a maravilha do mistério de tudo. E só aí se escuta a voz inaudível, a que espera que todo o ruído cesse e cesse mesmo o silêncio que se lhe segue. Neste mês torna-se ainda mais visível o enigma irreal e extático em que Coimbra se suspende. Haverá melhor altura do ano para olhar o rio e sua placidez bucólica debaixo de um imenso véu alaranjado de fim de tarde? E por vezes. Em certos momentos de não sei quê de assombroso. Prestar atenção à música longínqua que se evola do cimo dos vales, do absoluto da imaginação, do fundo da memória. Tudo tão pouco. Tudo tão de tudo. Agosto na cidade pode trazer consigo a voz de um começo, de um abrir para as origens, lugar incerto do nosso destino, da nossa vocação. A cidade torna-se íntima companheira e traz consigo uma transcendente disponibilidade materna. Fora da comunidade, somos nós que a inventamos e nos descobrimos. Até ao afundamento de nós. É escasso para os práticos e inquietos ( e até mesmo para os diletantes do silêncio, como eu), mas o manual de sobrevivência para este mês na cidade nunca foi sinónimo de facilidades. Resta-nos aproveitar o vago de encantamento que por vezes se nos cria. E olhar a génese de tudo. Pela primeira e última vez.
Led

2 comentários:

Mooncry disse...

Oh como te compreendo! Pior ainda é vir tdos os dias num comboio repleto de gente com toalhas e chapéus de praia!
Mas em Agosto consegues "saborear" muito melhor Coimbra :)
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P.S.: Gostei mto da foto!!

Ledbetter disse...

Malditos veraneantes e a sua felicidade aérea!:)

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