domingo, 10 de fevereiro de 2008

Ad finem

Todo o tempo de um homem que se consumiu. Ad finem. O que significam aqui, neste ermo primordial, todas as minhas preocupações mundanas, os compromissos quotidianos, a algazarra de fundo do mundo dos vivos? A aldeia deserta entremeada entre a montanha gelada e os campos ossificados, nus de miséria. O horizonte perdido à praga do vento e da chuva, na distância de uma esperança vã. As casas fechadas. As persianas corridas. As ruas abandonadas. Os quintais invadidos de chagas. A escola em ruínas. Um rafeiro escanzelado que se arrasta ladrando angustiado a ânsia do fim. O silvo do vento como um eco níveo. Escorre, balança-se em revoadas pelo espaço, e um terror obscuro emerge da massa da montanha, de um universo mais poderoso do que eu, anterior às ideias que tive, posterior às dos outros para em vez dessas. O aglomerado de vultos negros prostrados nos assentos graníticos em redor do templo central, como corvos negros, ciciando maníacos para a extensão do nunca mais. Como os móveis antigos e os objectos antigos, inteiros, ainda resistentes, mas postos de lado, como se não tivessem servido. São apenas objectos pitorescos para o nosso sorriso compreensivo e citadino. Passo em frente deles, interrompem o rumorejo cismático por momentos. Fitam-me com uma curiosidade atenta, carente, estupefacta. O seu olhar é hialino e molhado, toldado à melancolia de uma espera impossível e conformada. Pergunto-lhes pelo dono do café fechado. Não ouvem. Riem, desdentados, pregueados, descarnados, chupados, desgadelhados. Já não ouvem. Recordam o meu avô, talvez...Já não ouvem. O seu tempo é o do nunca mais. Uma vaga de silêncio ondula por toda a terra, na flutuação lenta das nuvens, na respiração final da tempestade. Silêncio que sepulta tudo o que morreu, me submerge de olvido e ao que à minha volta vibrou na eternidade do seu instante. Quantos milhares de vidas e de ideias e de projectos e de ilusões incógnitas se fixaram no mesmo alvo do meu olhar, calcorrearam os meus passos nesta calçada destroçada pelos frios telúricos, e o triunfo da sua verdade exclusiva na conformação dos seus músculos terrenos, que eram a sua firmeza visível, e o troar da sua violência, que era a notícia audível da sua posse do mundo – onde agora? Em que espaço inverosímil da sua imortalidade vã? Aldeia fantasmagórica, do tempo de um homem que se consumiu. O frio retrai-me à nulidade de mim, o silêncio mineraliza todas as vozes que já não ouço. Quem as ouve agora? Já não ouvem. O tempo afunda-se aos ocos do seu labirinto, ressoa aos passos do seu claustro de silêncio. A aldeia deserta, abandonada, aérea, vergastada pela fúria do vento. Vai chover pela noite, pressinto a chuva na quietude estranha de tudo como o augúrio de um aviso. Imagino-a vastamente pelo espaço da montanha, desdobrada à morte do mundo. A aldeia deserta no Inverno da vida... Mas sobre toda a aniquilação geral, um frémito subtil de um vago encantamento vibra-me ao espectro de uma alegria primordial. Consegues ouvir? É a alegria do nada, a pureza de ser, a ternura do meu olhar deslumbrado para o silêncio da terra que recomeça e espera pelo primeiro homem que aja sobre a terra inane. E eis que do fundo da memória uma manhã solene de verão, e o orvalho das sombras, e as noites ofegantes, e eu me sentava contigo a ver a lua grande nascer por sobre a montanha com a sua verdade mineral.
l
Led

4 comentários:

Lunapapa disse...

Lindo! Parabens...R*

Ledbetter disse...

Não sei se fiz bem publicar este texto, custa-me imenso relê-lo...Mas o que está feito, feito está! (ou será, feio está?)
Anyway............
Thanx a million, babe!;)

Mooncry disse...

Ainda bem que o publicaste!
Lembro-me há uns tempos atrás de um outro texto teu, uma espécie de ode/homenagem (não sei como lhe chamar)ao teu avô. E foi um dos textos mais bonitos que li... tão bom que ainda me lembro dele, e já o li há bastante tempo (acho).

Pelos vistos faz-te bem escrever sobre estas "coisas", ou pelo menos a nós faz-nos muito bem porque temos imenso prazer ao lê-los(falo por mim claro, mas pelos vistos não sou a única)! Portanto não pares de os publicar, mesmo que não te soem muito bem... acredita que estão muito bem escritos!
*

Ledbetter disse...

Nunca escrevi este género de divagações líricas pensando em quem me vai ler, porque, no fim de contas, normalmente escrevo apenas para me realizar (por mais cliché que isto possa parecer). Para me cumprir nos limites em que me descobri. E não é no momento em que escrevo que posso medir a projecção do meu texto, digamos o seu “êxito” ou não. Até porque normalmente existe um desfasamento largo de tempo entre a escrita até ao crivo da sua publicação. E mesmo porque tenho uma grande desconfiança da exposição ampla e descontrolada de alguma intimidade. Quando escrevo, o meu único público sou eu. Depois é que me ponho à espera de que sejam também os outros. Mas é evidente que me interessa que existam depois como público pelo desejo natural de me confirmarem a existência do texto e de se reconhecerem nele de alguma maneira.. È aliás esta a maior satisfação para o blogger, naturalmente encontrar um eco daquilo que escreve. E isto para te dizer que não vou comentar o texto, deixo ao critério contemplativo dos bons leitores deste espaço. Mas não vou negar a satisfação quando se lembram de textos meus publicados há séculos, sem falsas modéstias ou pompa bacoca, não fico indiferente. Espero que isto tenha tido sentido de alguma maneira, sem ter parecido demasiado pretensioso, sei bem o meu lugar. No final de contas, tu também escreves, vais perceber....Resumindo, obrigado!;)