Todo o tempo de um homem que se consumiu. Ad finem. O que significam aqui, neste ermo primordial, todas as minhas preocupações mundanas, os compromissos quotidianos, a algazarra de fundo do mundo dos vivos? A aldeia deserta entremeada entre a montanha gelada e os campos ossificados, nus de miséria. O horizonte perdido à praga do vento e da chuva, na distância de uma esperança vã. As casas fechadas. As persianas corridas. As ruas abandonadas. Os quintais invadidos de chagas. A escola em ruínas. Um rafeiro escanzelado que se arrasta ladrando angustiado a ânsia do fim. O silvo do vento como um eco níveo. Escorre, balança-se em revoadas pelo espaço, e um terror obscuro emerge da massa da montanha, de um universo mais poderoso do que eu, anterior às ideias que tive, posterior às dos outros para em vez dessas. O aglomerado de vultos negros prostrados nos assentos graníticos em redor do templo central, como corvos negros, ciciando maníacos para a extensão do nunca mais. Como os móveis antigos e os objectos antigos, inteiros, ainda resistentes, mas postos de lado, como se não tivessem servido. São apenas objectos pitorescos para o nosso sorriso compreensivo e citadino. Passo em frente deles, interrompem o rumorejo cismático por momentos. Fitam-me com uma curiosidade atenta, carente, estupefacta. O seu olhar é hialino e molhado, toldado à melancolia de uma espera impossível e conformada. Pergunto-lhes pelo dono do café fechado. Não ouvem. Riem, desdentados, pregueados, descarnados, chupados, desgadelhados. Já não ouvem. Recordam o meu avô, talvez...Já não ouvem. O seu tempo é o do nunca mais. Uma vaga de silêncio ondula por toda a terra, na flutuação lenta das nuvens, na respiração final da tempestade. Silêncio que sepulta tudo o que morreu, me submerge de olvido e ao que à minha volta vibrou na eternidade do seu instante. Quantos milhares de vidas e de ideias e de projectos e de ilusões incógnitas se fixaram no mesmo alvo do meu olhar, calcorrearam os meus passos nesta calçada destroçada pelos frios telúricos, e o triunfo da sua verdade exclusiva na conformação dos seus músculos terrenos, que eram a sua firmeza visível, e o troar da sua violência, que era a notícia audível da sua posse do mundo – onde agora? Em que espaço inverosímil da sua imortalidade vã? Aldeia fantasmagórica, do tempo de um homem que se consumiu. O frio retrai-me à nulidade de mim, o silêncio mineraliza todas as vozes que já não ouço. Quem as ouve agora? Já não ouvem. O tempo afunda-se aos ocos do seu labirinto, ressoa aos passos do seu claustro de silêncio. A aldeia deserta, abandonada, aérea, vergastada pela fúria do vento. Vai chover pela noite, pressinto a chuva na quietude estranha de tudo como o augúrio de um aviso. Imagino-a vastamente pelo espaço da montanha, desdobrada à morte do mundo. A aldeia deserta no Inverno da vida... Mas sobre toda a aniquilação geral, um frémito subtil de um vago encantamento vibra-me ao espectro de uma alegria primordial. Consegues ouvir? É a alegria do nada, a pureza de ser, a ternura do meu olhar deslumbrado para o silêncio da terra que recomeça e espera pelo primeiro homem que aja sobre a terra inane. E eis que do fundo da memória uma manhã solene de verão, e o orvalho das sombras, e as noites ofegantes, e eu me sentava contigo a ver a lua grande nascer por sobre a montanha com a sua verdade mineral.
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