quarta-feira, 14 de março de 2007

Distância de vertigem

E uma ternura sufocada sobe agora em mim. Uma necessidade bruta de te dizer que o calor do meu sangue precisava ainda algum tempo do teu para ser humano, e não a água tépida que depois veio a ser. Precisavas de te ter demorado um pouco mais, até o calor estabilizar no calor que me forneceste para eu ser fora de ti sem o saber. Mas se te não fosses, vê tu, nem saberia ou teria coragem para dizer-te isso, que nem sequer chega a final a ser sabê-lo dizer. Estou ainda e sobretudo hoje que passa um ano, confundido da tua ausência definitiva, que, quando passageira, tinha a definitividade e o conforto oculto de saber que algures existias. Julgava-te imortal, por direito consuetudinário. Ignorei naturalmente os avisos constantes da finitude que traziam os invernos agrestes que passámos na aldeia. Habituei-me a considerar-te estável como as leis do Universo. Mas morreste. Contra toda a verosimilhança, contra toda a lógica da vida, voaste para o intangível, para o absurdo que se explode em impossível. Porque, bem vistas as coisas, tu partiste de tão longe de mim, quando para longe pela última vez partiste. E no entanto, se isto se te pode dizer, cumpriste bem a tua vida no que é de se viver, com as satisfações e as amarguras que se lhe pertencem. Oitenta e dois anos são uma idade quase bíblica, e na Bíblia, como sabes avô, tudo tem a medida do perpétuo. Tenho na memória a tua imagem pousada no caixão com os corvos ao lado despachados no hábito e no folclore de conformidade, chorando a tua morte para chorarem a deles. Aberto de grandes espaços, o vento gélido da serra vibrava o seu augúrio de sombra. Vento de montanha, memória súbita de infância e o olhar suspenso da sua irrealidade. Fecho os olhos e escuto ao embalo da legenda. Legenda vã, memória de nada- é o nada que me é tudo na sua inesperada visita. Não estavas mal, com o teu ar recolhido sobre a nulidade do teu corpo morto. Mas não me dá jeito ter essa agora, feita do que te falsifica na exactidão de ti. Prefiro a de quando eras vivo e plausível, com o teu riso desdentado que era mais forte que tu, como quem tem com a vida um entendimento secreto e afirma nela a verdade de não haver morte. Prefiro essa para te imaginar ainda em casa, sentado no teu canto da cozinha com o lume aos pés ou coxeando pelo corredor, para eu poder quando quisesse viajar até ao mito que ficava em ti e destruir nele um pouco do meu desamparo...
Led