domingo, 28 de novembro de 2004
Cidade do Sol
"X...a Queima das Fitas e a nossa cidade do Sol... a serenata na Sé Velha. Transmitiram-na ontem indeferido pela TV e eu ouvi-a até ao fim. Mas a certa altura e de súbito a imagem de todo o largo coalhado de gente recuou um pouco para uma outra imagem antiga se lhe sobrepor. Havias tu agora nessa imagem e eu soube porquê. Estávamos no pátio da Universidade e a agitação da festa chegava até lá. Irreprimivelmente então eu perguntei-te e se fôssemos também ouvir? Se fôssemos ouvir? E tomo-te a mão e tu vens. Olho de novo aquela massa de gente e estamos lá. Nas escadas da Sé, escalonados pelos degraus, estão rapazes e raparigas de que só se vêem os rostos em destaque no traje preto de estudantes. E ao alto, os que irão cantar e tocar - se nos sentássemos num degrau? Mas tu preferes o largo coalhado de gente onde a música ressoa com maior amplidão. Subitamente retine a todo o espaço do largo um timbre de guitarra. E logo o silêncio se estendeu por toda aquela massa humana. Tomo a tua mão, os dedos entrelaçados, e escuto. Escutamos os dois, unidos como dizer-te na transcendência de nós, na transfiguração de tudo o que pensássemos, numa legenda antiquíssima que nos levasse consigo. O céu estava limpo e viam-se as estrelas. Toda a iluminação do largo tinha sido apagada e viam-se melhor assim. E havia em nós um movimento alado para nos dissiparmos entre elas. Apertei-te a mão e tu apertaste a minha e eu tive a evidência de que nada nos podia separar. Agora um estudante cantava uma balada - "morrer é passar um dia todo inteiro sem te ver".
Vejo-nos aos dois no fundo do largo, só a fachada da Sé se destaca, batida de um facho luminoso com os estudantes nos degraus, até que a balada findou, Mas tudo fica em silêncio, não se ouve um aplauso sequer. Como lá dentro da Sé, pensei. Comunhão do silêncio. Da prece. E foi quando uma guitarra lançou o seu lamento profundo, talvez um chamamento para longe, para alguém invisível que se afastava para nunca mais
Fomos abrindo caminho pelo molhe de gente, chegamos ao fundo da rua do Norte. À direita, a massa escura da Sé, e pelo ar, ainda e sempre, o ondeado de uma balada. E chegamos enfim, ao cimo da rua, junto à Porta Férrea.... Está uma noite fria e cristalina de Novembro, sedosa como a tua face. É uma música de, um prazer que não devia haver na sua dolência melancolia. Vem nela uma amargura terna do que passou, de um lugar incerto, talvez de uma tarde no jardim à beira-rio onde estivéssemos os dois em silêncio. A balada enche todo o espaço desta sala, ressoa ainda lá fora na noite. É uma balada de uma longa amargura sem razão. Mas o espectáculo vai terminar. Ouço a balada de despedida nas guitarras como um dobre de sinos. Despedida de tudo, de nada, é bom ouvir e ceder um pouco ainda a uma certa dispersão de mim com esta música de um tempo antiquíssimo...inviolável no absoluto de nós dois... ...a Queima das Fitas e a nossa cidade do Sol...doce e sagrada mágoa como tu dentro de mim..."
Led
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