De vez em quando, e nos momentos mais imprevistos, derrama-se-nos sobre a alma uma tristeza infinita. De quê? De nada. Um deslizar brusco de tudo o que se acumulou, o rompimento das frágeis fibras sociais que nos amparam, até à nulidade e à indiferença dormente... Sem pré-aviso ou manual de instrução. Só nos damos conta do inesperado jacto, da irrupção brusca, do estampido de uma evidência áspera. Podemos talvez compor uma razão erudita e idealizada. E escriturar algo belo e piedoso sobre ela para colher compaixão vadia dos espúrios desgraçados que somos todos também. Coisas repetidas de best-seller e colunas cor-de-rosa, clichés desenxabidos, poemas respingados de banalidade, cotoveladas na sintaxe besuntadas de hipérboles e eufemismos, ninharias chorosas e artificiosíssimas com a pompa de coisas profundas e originais. Mas no vazio mais estéril de descrença todas as razões estão indisponíveis quando as procuramos.... E aí a sensibilidade mutilada. É a apatia de lodo que nem a música consegue fazer estremecer. É o cansaço cavado, é o descontrolo, é a vergonha rubra, são as trevas do mundo. É de manhã, o céu está nublado, há todo um dia a refrear. Mas de outras vezes, é uma alegria inesperada que nos invade, nos edifica além de nós, nos instaura em harmonia e bem-estar. O mundo multiplica-se de vozes mornas que nos falam, nos sustentam na rede do seu apoio, nos criam o lugar do adormecimento como uma mão quente na face. Na sala o rádio transmite não sei que música solene, (Mahler?), todo o interior da casa reverbera a claridade que vem lá de fora. E, subitamente, a aparição da verdade original, o encantamento da vida e do seu fulgor luminoso renascido. Somos assim um joguete de forças desconhecidas, com um sentir, todavia, que é nosso, nascido de nós e que em nós procura às cegas uma razão de ser. Porque deve haver uma razão para estarmos alegres ou tristes. E não há. Ou há aquelas razões domésticas que há sempre e logo adoptamos para haver lógica e coerência na vida. Sabemos assim de um amor forte que se nos extingue abruptamente ou do impossível gritante de ser nosso em plenitude. De um acidente ou da força renascida de dele sairmos incólumes. Da doença ou do conforto da convalescença. Da nostalgia ou da saudade dela sentir. Do sucesso ou do fracasso de um projecto. Da incompreensão de algo ou alguém que nos deixa ou que nos entra na vida e que ainda assim entra na íntima dialéctica que estabelecemos como razão para se estar triste ou alegre. Mas...só em súbitos instantes nos forma a evidência disso e a alegria ou o desgosto disso, a indiferença ou a agitação. Só em determinados momentos se vive o excesso de ser - o resto é a morte e o absoluto da sua inverosimilhança com o peso de uma grande pedra. O resto é o ser-se sem se ser. Na modorrenta e tranquila uniformidade. Em que é que se é mais homem? “Gato que brincas na rua...És feliz porque és assim” (Pessoa). Se na ponte segura. Se no abismo negro. Se no voo alado. Sei lá hoje onde se é mais humano. Tanta palavra importante que se nos escuma da boca. E nenhuma ser a essencial, a que nos dissesse todo e tudo e repercutisse na boca dos que a ouvissem. Que extraordinário esta coisa de o excesso de ser durar tão pouco. Mas decerto é necessário a intermitência para existir o seu deslumbramento, para ser excepção a sua excepcionalidade. E é esse, sem dúvida, o erro dos que ainda nos falam da felicidade. Porque se fossem apenas felizes, não eram felizes.
Led